domingo, 2 de janeiro de 2022

[0083] 4.º texto de Joaquim Saial no jornal cultural "As Artes Entre as Letras" (Porto), de 29.12.2021






Devido a problema técnico irritante do programa informático utilizado na publicação do jornal, o nome da lancha "VEGA" foi reconhecido como um erro e automaticamente alterado para "VEJA" na edição em papel. Aqui, o verdadeiro nome da malograda embarcação é retomado. Com as emendas devidas, o texto foi republicado na edição do dia 12 de Janeiro - o que, convenhamos, é raro e só honrou o jornal


A Batalha do Mar de Diu

Joaquim Saial

Completaram-se a 18 de Dezembro de 2021 seis décadas sobre as duas últimas refregas em que Portugal participou com meios navais, quando a União Indiana invadiu os territórios da então designada Índia portuguesa [1]. No mar de Goa, o aviso de 1.ª classe "Afonso de Albuquerque" foi neutralizado, tendo a guarnição sofrido cinco mortos e vários feridos, entre os quais o comandante, António da Cunha Aragão (Lisboa, 1904). Tratou-se de uma batalha naval na verdadeira acepção da palavra, embora entre pequeno e obsoleto vaso de guerra do lado português e vasta e poderosa armada que até comportava um porta-aviões, do contrário. A desproporção de meios permitiu ao inimigo uma vitória fácil – pese, embora, a valentia dos marinheiros portugueses, reconhecida pelos indianos [2]. 

A batalha do mar de Diu, aquela que interessa para este artigo, teve lugar no mesmo dia e apresentou forças em confronto de igual modo díspares. O 2.º tenente Jorge Manuel Catalão Oliveira e Carmo (Alenquer, 1936), comandante da lancha de fiscalização em fibra de vidro "Vega" – equipada apenas com uma antiaérea de 20mm e guarnição de mais sete homens –, depois de tentar efetuar um ataque ao cruzador indiano "Delhi", decide entrar em combate contra os caças-bombardeiros Vampire que metralhavam as tropas terrestres portuguesas. Com o fogo da peça da "Vega" são repelidos vários ataques aéreos e atingidos três aviões. No entanto, numa derradeira carga em fogo-cruzado, os caças indianos bombardearam a lancha – matando o comandante e o marinheiro-artilheiro António Ferreira e ferindo três homens, um dos quais morreria mais tarde –, afundando-a envolta em chamas. Segundo relatos dos sobreviventes, Oliveira e Carmo tombou com uma rajada no peito. Nos últimos momentos, tinha as pernas cortadas pelas coxas. Fardado de branco, disse aos seus homens que assim morreria com mais honra. O marinheiro-artilheiro Aníbal dos Santos Fernandes Jardino, sucumbiu durante a tentativa de salvação a nado, devido a ferimentos resultantes do combate (perna esquerda cortada pela canela) [3]. 

Para além dos louvores, promoções por distinção, condecorações e outras homenagens que estes homens receberam, pelo menos dois tiveram até agora monumento escultórico público: Oliveira e Carmo e Aníbal Jardino. O dedicado ao oficial foi erigido na sua terra, Alenquer, por iniciativa do município, em Agosto de 1962, menos de um ano após os acontecimentos da Índia. Digno, mas vulgar, traduz-se na clássica apresentação de busto sobre pedestal e nada acrescenta ao género [4]. Diferente é o caso da memória a Aníbal Jardino (1935, Carção, Vimioso, Bragança), com autoria de José António Nobre (1954, Sendim, Miranda do Douro), artista de longa carreira e vasta e sólida produção escultórica pública [5]. Com encomenda da Câmara Municipal de Bragança, o monumento foi inaugurado a 18 de Dezembro de 2004, no Jardim Público Parque Eixo-Atlântico da cidade. Trata-se de um conjunto em bronze sobre suporte de granito, com altura aproximada de 6m, por 4,20m de frente. A parte metálica configura o busto do desditoso militar, agregado ao esqueleto incompleto do convés da "Vega", depois de tomada pelo fogo, a mergulhar no oceano, crivada de balas, sugeridas pelo escultor com marcas na amurada. Acertadamente, Jardino não é representado a soçobrar no interior da embarcação [6], visto que faleceu, como antes referimos, durante a dramática viagem de sete horas em que os companheiros, a nado, o transportaram sobre pequena balsa [7] até atingirem terra. Assim, o busto está integrado numa aplicação de ondas (também em bronze) colocada do lado de bombordo, a meio da lancha que mergulha inclinada nas águas, mas no exterior da mesma – figurando-se com economia de meios a ligação entre ambos e o seu mútuo fim nas águas do Índico. A base do monumento, em granito, recorda o vínculo do marinheiro ao local de origem e ao mesmo tempo aponta para as profundezas onde a lancha repousa, bem como dois dos seus tripulantes. Sabemos por documentação que o escultor nos facultou que nos estudos preliminares ainda houve as ideias de apenas um conjunto de ondas ou de uma alusão mais fiel à "Vega" navegando sob um mapa da Índia. A arrojada versão final é mais sintética (diríamos, nada literária) e, contudo, de todo acessível, mesmo para quem não esteja muito a par do acontecimento que evoca. Destaque-se que o monótono pedestal do costume desapareceu, para dar lugar apenas ao suporte em granito, também ele simbólico, telúrico, "genético". Jardino, com o boné e alcache [8] regulamentares da Armada, perfila-se como o herói que foi, num monumento que dignifica o seu sacrifício e se apresenta na obra de José António Nobre como um dos momentos mais significativos, pela originalidade demonstrada.

[1] A operação "Mar Verde", realizada em 22.11.1970 com a invasão do Conacry (República da Guiné) que tinha entre outros objetivos a libertação de 26 prisioneiros de guerra portugueses, embora levada a cabo com meios navais não fosse uma batalha naval.
[2] Os comandantes indianos foram visitar o Comandante Aragão no Hospital Escolar de Pangim, onde foi hospitalizado... e prisioneiro de guerra.
[3] Pelo facto, foi promovido por distinção ao posto seguinte, assim como aos camaradas de armas.
[4] Não conseguimos apurar, a tempo deste texto, a identidade do autor da peça.
[5] Atividade regular de exposições individuais e coletivas, escultura interior e pública e medalhão.
[6] O relatório oficial indica que isso só aconteceu ao comandante e ao marinheiro-atirador António Ferreira.
[7] Um dos homens de "Vega", o marinheiro-fogueiro António da Silva Nobre, também se salvou para nadar, mas separadamente dos outros camaradas.
[8] Ou "colarinho de alcacha", como também é designado.

Um aspecto da maqueta. Fotos de José António Nobre,
excepto as duas últimas




José António Nobre, na fundição, junto ao busto do cabo Jardino

Aspecto da inauguração do monumento