sábado, 5 de março de 2022

[0103] 5.º texto de Joaquim Saial no jornal cultural "As Artes Entre as Letras" (Porto), de 26.01.2022







Os "contorcionistas invertebrados" de Maximiano Alves

Joaquim Saial


A expressão "contorcionistas invertebrados" é do pintor e ilustrador Carlos Botelho, alusiva aos dois "gigantes", esculturas de figuras masculinas que ladeiam e visualmente suportam as estátuas superiores do monumento aos Mortos da Grande Guerra de Lisboa, inaugurado em 1931. Escreveu-a ele como legenda de um cartoon alusivo, no semanário humorístico "Sempre Fixe" do dia 12 de Novembro, pouco antes da cerimónia de descerramento do conjunto que tem por autores o arquitecto Guilherme Rebelo de Andrade (pedestal [1]) e o escultor Maximiano Alves (1888, Lisboa – 1954, Lisboa). O texto completo é "Senhor Minimiano (por oposição a Maximiano) Alves, o seu modelo ou era molusco ou um contorcionista invertebrado… brado eu e toda a gente…" No cartoon, via-se ainda um desenho da tribuna feita para a ocasião, a que Botelho chamava "Pavilhão estilo 1890, construído em 1931", piada dentro da piada, aludindo neste caso ao aspecto antiquado do mesmo, semelhante que era a outros feitos no século XIX. Botelho detinha a totalidade do espaço da página 8, última do jornal, sob o título de "Ecos da Semana". Ali fazia frequentes alusões a monumentos ou estátuas que se iam erguendo no território continental e ultramarino, em geral com acerto. Contudo, neste caso não era totalmente justo, pois se por um lado as figuras têm algum excesso de pose, por outro asseguram com a energia associada à torção dos corpos a ideia pretendida, de transmitir o agradecimento dos portugueses às suas tropas presentes na Grande Guerra, consubstanciado nas estátuas cimeiras, do soldado e da Pátria que o galardoa com coroa de louros. José-Augusto França falou do gosto "expressionista miguelangesco" de Maximiano imposto aos dois "gigantes" [2]. Na realidade, se eles não têm a perfeição do "David" do Buonarroti, são ainda assim dos melhores exemplares no género e da sua época realizados em Portugal. O monumento tem historial longo, com curiosas peripécias que devido ao reduzido espaço de que dispomos não podem aqui ser contadas. Adjudicado aos autores por escritura de 22 de Outubro de 1925 e descerrado a 22 de Novembro de 1931, é o que do seu tipo mais meios movimentou e apresenta-se como peça que cumpre as funções para que foi criado. Sem grandes rasgos de originalidade, é afinal um monumento honesto, sendo ainda hoje ali que se realizam as cerimónias principais de homenagem aos militares portugueses que serviram o país ou por ele tombaram durante o primeiro grande conflito mundial. 

No final da década, Maximiano Alves reincidiria no modelo de figuras masculinas  em torsão, quando realizou as chamadas "Fontes" para os terminais do antigo sifão de Sacavém, sobre o rio Trancão. O velho aparelho hidráulico de ferro foi substituído por nova estrutura mais monumental, em cimento armado [3], que em cada topo tinha uma edificação encimada por estátua de vasto tamanho, no mesmo material. A obra foi entregue pela comissão de abastecimento de águas a Lisboa e pelo ministro das Obras Públicas Duarte Pacheco aos irmãos Rebelo de Andrade que por sua vez procuraram a colaboração do escultor. Eis parte da descrição de uma das estátuas, feita no "Diário de Notícias" de 13 de Abril de 1938. "Essa estátua de linhas singelas gigantescas representa um homem, que de joelhos em terra esvazia um enorme cântaro de água. Tem sete metros de altura, mas de pé teria quinze. Essas dimensões fazem dela a maior de Portugal (…) A do marquês de Pombal (…) tem só nove metros). (..) esta (…) é tão volumosa que dentro da cabeça, na sua moldagem de gesso, pode um homem normal andar a vontade, pois tem para isso o espaço de uma saleta  com dois metros de altura (…)". O trabalho levou dois anos a concretizar em gesso e mais um a ser passado ao cimento. Obras inusuais em Portugal, de expressão facetada, para serem  percebidas de longe, tiveram final inesperado, quando foram mandadas destruir "Em nome da estética", como titulava o "Diário Popular" de 9 de Dezembro de 1942, em notícia de 1.ª página: "Em miniatura, as figuras eram de grande efeito. Mas, uma vez em plano de construção definitiva, assumiam tais proporções que dominavam a ponte e tudo em redor, revelando dimensões gigantescas que prejudicavam a ideia de beleza que havia preconcebido a sua realização." 

Esta estranha e rara demolição [4] (que não inédita [5]), havia de ser de certo modo vingada pelo escultor com peça de pequeno volume, figurinha naturalista que novamente em pose de torsão segura com ambas as mãos uma taça em forma de semiesfera. Intitulada "Menino com gamela", está datada de 1948 e situa-se no Jardim do Campo Grande (Jardim Mário Soares), Lisboa.


[1] O monumento está assinado no pedestal por Maximiano Alves e por Guilherme Rebelo de Andrade que a 25 de Novembro recebeu o grau de comendador da Ordem de Cristo, em cerimónia que teve lugar no Palácio de Belém; Maximiano Alves foi agraciado com o grau de oficial. Contudo, alguma bibliografia dá a parte arquitectónica como parceria de Guilherme Rebelo de Andrade e de seu irmão Carlos que de facto fez dupla com ele em vários projectos.

[2] FRANÇA, José-Augusto. A Arte em Portugal no Século XX, Livraria Bertrand, Lisboa, 1974.

[3] Diogo de Macedo já utilizara em 1914 este material de forma pioneira em baixos-relevos no portuense Teatro de São João: "Amor", "Dor" e "Ódio".

[4] Resta uma cabeça, exibida dentro de estrutura metálica, perto do local inicial, desde 1 de Outubro de 1998 (manhã do dia seguinte ao encerramento da EXPO 98), data em que foi inaugurada a requalificação das margens do rio Trancão, na zona da sua foz.

[5] Lembramos, por exemplo, o conjunto "Camaradagem na Derrota" de Hein Semke, mandada destruir pelas autoridades nazis da embaixada germânica em Lisboa, pouco após a sua inauguração (meados dos anos 30), na Igreja Evangélica Alemã de Lisboa.

Foto Joaquim Saial



Foto Joaquim Saial

2 comentários:

  1. Excelente trabalho com as curiosidades sempre presentes.

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  2. Conhecia a escultura da Avenida da Liberdade, mas não esta curiosa história paralela. Os "contorcionistas invertebrados" é uma expressão que demonstra de facto o pensamento da época. Contudo, entendo a opção do escultor de "torcer e não partir". Afinal, conduta tão frequente entre a lusa gente.

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