sábado, 19 de março de 2022

[0115] 6.º texto de Joaquim Saial no jornal cultural "As Artes Entre as Letras" (Porto), de 23.02.2022 ..... Primeira parte de duas





"Manual prático" de destruição de monumentos escultóricos (1/2)

Joaquim Saial


Desengane-se, leitor, se ao dar com o título do presente artigo pensa que o escriba do mesmo apoia a destruição de esculturas públicas que adquiriram anticorpos desaconselháveis à sua presença em jardins, praças, avenidas e ruas. É que, para além de uma estátua poder ser homenagem a figura ou acontecimento hoje reprovável, teoricamente é obra artística, pelo que comporta valores que exigem a sua salvaguarda. Adequado tratamento museológico facilitará, entretanto, a possibilidade de passar a ter acrescido significado educativo, mantendo-se disponível para o estudo da arte. A propósito, recordemos polémica contada por José-Augusto França: no dealbar da revolução do 25 de Abril, a estátua de Oliveira Salazar (esc. Francisco Franco), na altura retirada do pátio do Palácio Foz e depositada no jardim de um edifício público, foi apetecida pelos moradores de certa freguesia e pela sua junta. Queriam estes vendê-la, para com o ganho obtido pelas quase duas toneladas de bronze se fazer um qualquer melhoramento local. Porém, ignoravam os fregueses e o seu presidente "que a estátua não era de Salazar, como se supunha, mas de Francisco Franco" (palavras de J.-A. França, junto das autoridades competentes, tendo em vista salvar a obra). O escândalo fez gorar o "negócio" e a estátua lá sobreviveu [1]. Posto isto, vejamos alguns motivos que originam destruição total ou parcial de monumentos escultóricos:

1 – Estética, como argumento – Falámos no artigo anterior, da demolição das figuras em cimento, designadas como "Fontes", que estiveram sobre as duas construções de remate do sifão de Sacavém (1938, esc. Maximiano Alves) e foram demolidas por razões alegadamente estéticas, de… gigantismo. Noutro caso, um primeiro monumento ao médico Dr. Sousa Martins (esc. Aleixo Queirós Ribeiro, Campo dos Mártires da Pátria, Lisboa), muito criticado por a estátua estar sentada em modesta cadeira (!), a representação foi substituída em 1907 por outra, de pé, da autoria de Costa Mota (tio).

2 – Fúria dos elementos – Circulou desde a criação do "Padrão dos Descobrimentos", feito para a Exposição do Mundo Português de 1940 (arq. Cottinelli Telmo e esc. Leopoldo de Almeida), a anedota que dizia que as figuras patentes em ambos os lados estavam ali para empurrar o infante D. Henrique para o Tejo. Como o monumento inicial era cenográfico, sobretudo de madeira e estafe (embora com esqueleto em ferro) [2], o destrutivo e mortífero ciclone de 14 de Fevereiro de 1941 cumpriu o chiste, atirando de facto a estátua ao rio, onde se desfez [3]. O mesmo sucedeu no dito dia ao monumento de 12 metros de altura com estátua equestre de Gomes da Costa, também ainda em gesso (c. 1940, esc. Alberto Ponce de Castro, executado por Armando Correia, avenida Marechal Gomes da Costa, Porto).

3 – Vandalismo – Uma primeira espécie remete-nos para a vontade de destruir, sem outro fim que não esse. Lembremos os dedos e braços arrancados à estátua da "Verdade" no monumento em mármore a Eça de Queirós (1903, Teixeira Lopes, Largo Barão de Quintela, Lisboa) [4]. Ainda assim, sem que o possamos comprovar com certeza, tais actos poderão eventualmente estar associados ao gosto doentio de possuir souvenirs das obras atacadas ou até negócio, com venda dos elementos arrancados. A estátua de Almeida Garrett (1950, Barata Feyo, Av. da Liberdade, Lisboa – foto do texto) é mais uma à qual foram quebrados dedos. Outro tipo de depredação resulta de estragos produzidos por subida a estátuas, para fazer fotografias com estas por companhia,  como ocorreu em 2016 com a destruição da do Rei D. Sebastião (c. 1890, esc. francês Gabriel Farail, embora se tenha apontado ser de Simões de Almeida, tio) existente num nicho da fachada da estação de comboios do Rossio, quando um turista quis fazer com ela uma selfie [5]. Pura brincadeira, originara a morte de um estudante em 2013, por se ter pendurado do busto em bronze do pintor e cenógrafo José Cinatti existente no jardim público de Évora (1884, Simões de Almeida, tio), que acabou por lhe cair em cima, esmagando-lhe o peito [6]. Melhor sorte teve outro que, em 2014, em Guimarães, suspendendo-se da espada da estátua de D. Afonso Henriques (esc. Soares dos Reis) a partiu, mas escapou ileso [7]. Rematemos o triste rol, com episódio passado durante a transmissão de um jogo de futebol na Praça do Comércio, por altura do Mundial de 2018. Alguém que se empoleirou no monumento ao Rei D. José I (1775, Machado de Castro, Praça do Comércio, Lisboa) partiu um dedo de uma das estátuas laterais, à qual já faltavam outros [8]. Mais exemplos de vandalismo poderíamos dar, propositado ou involuntário, mas estes já dão ideia bastante do recorrente fenómeno.

(continua)

[1] FRANÇA, José-Augusto. Quinhentos folhetins, Col. Arte e Artistas, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1984, p. 390. Modelada para a Exposição Internacional de Paris (1937), a estátua teve pelo menos uma réplica em Lourenço Marques/Maputo. Aquela de que falamos, esteve guardada em local municipal em Loures e agora encontra-se à espera de novo destino em Santa Comba Dão.

[2] O primitivo monumento começou a ser demolido em 2.7.1943, trabalho que se previa durar dois meses. Cinco operários da União de Sucatas retiraram do local 170 toneladas de ferro e 200 de madeira. A este respeito, ver "Diário Popular", 5.7.1943, pág. 1. O actual, em pedra, foi inaugurado por altura do V Centenário da morte do Infante, em 1960.

[3] "Diário de Lisboa", 16.2.1941, pág. 1.

[4] Substituído por réplica em bronze (26.7.2001), o inicial encontra-se no Museu da Cidade, Lisboa.

[5] "Observador", 29.1.2020 e "Público", 9.7.2020 (internet, 7.2.2022)

[6] "Diário de Notícias", 13.8.2013 (internet, 7.2.2022).

[7] "Público", 11.10.2021 (internet, 7.2.2022).

[8] "Observador", 20.06.2028 (internet, 7.2.2022).

"Diário de Lisboa", 16.02.1941

"Almeida Garrett", Av. da Liberdade, Lisboa, esc. Barata Feyo - Foto Joaquim Saial

Mão vandalizada da estátua de Almeida Garrett, Av. da Liberdade, Lisboa, esc. barata Feyo - Foto Joaquim Saial

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