sábado, 25 de dezembro de 2021

[0080] 1.º texto de Joaquim Saial no jornal cultural "As Artes Entre as Letras" (Porto), de 29.09.2021 (fotos de Joaquim Saial)







O divertido, mas impossível "burro-escorrega" de Cacilhas

Joaquim Saial

Até à inauguração da ponte de 1966, Cacilhas foi, tal como o Barreiro, importante porta de entrada ou saída do Sul do país. Atravessava-se o Tejo de vapor ou de veleiro desde a capital até essa freguesia almadense e aí, pelo menos até ao final dos anos 20 do século passado, quem depois queria continuar com mais conforto para localidades limítrofes, alugava um burro. Igualmente, eram levados em barcos, a solo ou atrelados a carroças, transportando mercadorias para Lisboa ou de lá as trazendo depois. A  vasta quantidade de jericos sempre disponíveis junto ao local de atracação das embarcações deu origem a piadas recorrentes que até falavam de uma suposta "Universidade de Cacilhas", frequentada por "burros". Talvez (ou sobretudo) por isso, o pintor Columbano Bordalo Pinheiro, nascido em Cacilhas por mero acaso de fuga da mãe grávida a mortífera epidemia de febre-amarela existente em Lisboa no ano de 1857, não gostava que dissessem que tinha vindo ao mundo naquele local da margem sul do Tejo. No seu famoso e acutilante "Manifesto Anti-Dantas" de 1915, Almada Negreiros seria um entre muitos que citaram os asnos cacilhenses.

Ora acontece que a Câmara Municipal de Almada resolveu comemorar em 2001 os 25 anos de poder local democrático, encomendando a 11 escultores outros tantos monumentos, um por cada uma das freguesias à data existentes no concelho. São no geral obras de boa qualidade e quase por inteiro de carácter abstracto. Uma, porém, se salienta pelo seu sentido surrealizante, assaz bem-disposto: a intitulada "As Crianças Primeiro", de Jorge Pé-Curto (Moura, 1955).

Lembrando os parques infantis que logo após o 25 de Abril proliferaram pela maioria das localidades do território nacional, a escultura de Pé-Curto está instalada no passeio de uma pracinha oblonga que se abre na Rua Comandante António Feio, com bancos de jardim e algum arvoredo, local inclinado que obrigou à normalização horizontal da base rectangular em que a peça assenta (betão, com revestimento de placas de granito [1]). É composta por duas chapas de aço corten, paralelas e idênticas, recortadas em desenho com forma de burro sentado sobre os membros traseiros. Unindo-as, temos na frente sete tubos de aço inoxidável, sugerindo degraus de escada; no outro lado, uma chapa também inoxidável que percorre o burro desde o topo da cabeça até ao solo. Para além disto, e fazendo jus ao nome do conjunto, vemos três esculturas de crianças, em bronze e em tamanho natural: um rapazinho sobe a escada, agarrando-se ao degrau que equivaleria ao freio do burro; outro, já está no topo, ávido por lançar-se na chapa do escorrega; por fim, uma menina de laçarote na cabeça e de braços abertos, desliza por ela, prestes a atingir o solo. A iluminação não foi esquecida, feita a partir de quatro focos instalados nos cantos da base da escultura, onde também vemos a identificação da mesma. Ressaltam desde logo a referência inusitada aos burros cacilhenses, o limpo desenho da dupla figura recortada, a boa qualidade naturalista e espontaneidade das representações infantis e o humor com que a homenagem às crianças é exposta. 

Ora estes três meninos, tanto são um hino à infância ingénua, feliz e descontraída (o que de facto neles se pode "ler"), como o fulcro da impossibilidade imposta pelo escultor que quis ali fazer uma obra de arte para ser fruída pelo olhar e não um equipamento de jardim infantil – pois nenhuma criança de carne e osso consegue subir pelo burro, nem descer pelas costas dele, disso impedida pelos três "imóveis" companheiros de folguedo ali plantados. Daí que seja talvez excessivo chamar ao simpático animal "burro-escorrega", já que nele só com dificuldade se podem subir os dois degraus iniciais e é impossível escorregar (excepto através da imaginação do espectador que o observa). O contraste de cor entre os materiais utilizados (que, no entanto, se completam) é outro motivo de interesse, pelo eficaz desempenho em termos visuais e da verosimilhança que oferecem à cena.

Uma vez por outra, nas muitas passagens que com regularidade fazemos pelo local, temos visto pichagens de rabiscos e palavras em ambas as chapas de aço. De igual modo, já houve tempo em que parte da cobertura do suporte esteve em mau estado. Felizmente, os serviços municipais respectivos recuperaram a base e vão limpando a peça com regularidade, pelo que no momento em que escrevemos estas linhas e a fotografámos, a escultura estava imaculada, sem sinal de danos – o que pode indiciar a sua apropriação pelas gentes vizinhas, que de início a estranharam, mas depois a adoptaram e estimam. 

Num sítio em que a construção é antiga, de população envelhecida e onde por via disso se verifica acentuada falta de crianças, este monumento engenhoso quase que colmata esse senão. Dia e noite, com a militância que a arte e sobretudo o escultor lhes ofereceram, o burro e os divertidos meninos metálicos são a alegria (silenciosa) do local, anunciando de certo modo o bulício que metros abaixo se desenrola na rua Cândido dos Reis, em época recente tornada pedonal, repleta de restaurantes, bares, esplanadas... e gente.

[1] LIMA, Filomena Maria Figueira Freire de. Escultura em Espaços Públicos de Almada: da Colecção à Proposta de Acção Museal/Educação Patrimonial, tese de Mestrado em Museologia e Museografia, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2006. Neste importante trabalho, à pág. 59 diz-se que o revestimento é de xisto. Interrogado por nós, o escultor apenas se referiu ao granito que hoje lá se pode ver.


















Sem comentários:

Enviar um comentário