domingo, 26 de dezembro de 2021

[0082] 3.º texto de Joaquim Saial no jornal cultural "As Artes Entre as Letras" (Porto), de 24.11.2021



Mártires portugueses da Grande Guerra, da Armada e da marinha mercante: três monumentos

Joaquim Saial

A Marinha de Guerra é um dos orgulhos nacionais portugueses. Ao longo de séculos, este ramo das forças armadas tem vindo a construir um historial que mesmo nos momentos de derrota quase sempre se consegue revestir de heroísmo. Por isso, a generalidade da população estima a marinhagem e os seus "veículos", entre os quais sobressai o navio-escola "Sagres", ícone da Armada. Por sorte, nos últimos 100 anos, esta não tem sido fustigado com os desastres que outras marinhas têm suportado. A Grande Guerra foi relativamente generosa com ela, apenas com um caso de afundamento em combate que logo se tornou mítico. Na II Guerra Mundial, não participámos. E na Colonial, os piores números penderam sobretudo para o lado do Exército, o mais atingido por mortes em batalha. Ainda assim, o caso do navio patrulha de alto-mar (ou caça-minas, como é mais referido) "Augusto de Castilho" bombardeado por um submarino alemão em 14 de Outubro de 1918 e os combates navais em defesa da Índia portuguesa em 18 de Dezembro de 1961, em que foram abatidos pela marinha da União Indiana o aviso "Afonso de Albuquerque" e pela aviação do mesmo país a lancha "Vega", deram origem a alguns monumentos escultóricos, três dos quais são motivos da presente "Escultura Pública".

Comecemos pelo chamado padrão de Santa Maria, erigido em Vila do Porto, ilha de Santa Maria, Açores. Inaugurado em 4 de Outubro de 1929, numa esplanada do forte de S. Brás, lembra a chegada de sobreviventes do ataque ao "Augusto da Castilho", três dias após o afundamento do navio. Peça algo atarracada, da autoria do arquitecto Raul Lino (1879, Lisboa – 1974, Lisboa), tem panóplia decorativa de teor "manuelino", com cruz de Cristo, esfera armilar e cordame que assentam num bloco de cinco cilindros. Teve a particularidade de ter sido exposto na lisboeta Avenida da Liberdade no Agosto anterior, como já tinha sido o Zarco de Francisco Franco, ambos primeiros a terem tido essa honra. Carlos Botelho, em desenho no "Sempre Fixe", chamou "monumento catita" [1] ao memorial, escolhido por um júri de arquitectos, composto por Norte Júnior, Tertuliano Marques e Cristino da Silva e executado em pedra cinzenta da serra de Cabriz pelos irmãos canteiros Almeida Rodrigues que tinham oficina na Calçada Marquês de Abrantes, em Lisboa.

Outro monumento, também levantado nos Açores, desta feita na ilha de São Miguel, encontra-se adossado à muralha do forte igualmente designado como de São Brás. Sugerido pelo antigo presidente da república Manuel Teixeira Gomes, trata-se de uma homenagem mista à marinha mercante (pioneira, neste segundo caso) e à Armada. Dedicado aos "Marinheiros portugueses", teve projecto aprovado em 25 de Julho de 1933, mais uma vez da autoria do arquitecto Raul Lino [2], agora com colaboração de Diogo de Macedo (1889, V. N. Gaia – 1959, Lisboa), na parte escultórica [3]. Inaugurou-se a 26 de Abril de 1936, na presença de autoridades da ilha e de oficialidade que se deslocou de Lisboa, a bordo do paquete "Vulcânia" e do aviso "Afonso de Albuquerque" – que cerca de três décadas depois seria afundado em combate, em defesa da Índia portuguesa. Relativamente discreto, sem exageros escusados, com o marinheiro da Armada segurando uma espingarda e o da marinha mercante apoiando-se numa âncora, oferece-nos a visão de dois musculados mártires da guerra sobre proas de navios vagamente esboçadas que cruzam o oceano, representado pela arca de água que enquadra o conjunto e lhe dá maior monumentalidade e sentido.

O último que referiremos é o dedicado ao comandante do "Augusto de Castilho", 1.º tenente Carvalho Araújo, herói morto durante serviço de escolta ao navio mercante "S. Miguel" [4], numa luta desigual em velocidade e armamento, contra um submarino alemão comandado por um dos oficiais mais hábeis da frota germânica. Com concurso realizado em 12 de Abril de 1928 [5], a maqueta vencedora foi escolhida por júri composto por gente das artes maiores: o pintor João Augusto Ribeiro (professor da Escola de Belas Artes do Porto), o escultor António da Costa (como delegado da Sociedade Nacional de Belas Artes) e o arquitecto Carlos Ramos (como representante da Associação dos Arquitectos Portugueses). A vitória foi para a maqueta do escultor Anjos Teixeira (pai) – (1880, Lisboa –1935, Lisboa), depois traduzida numa obra digna, de três metros de altura, em bronze, que nos mostra o intrépido oficial de punhos cerrados, em atitude determinada e gesto enérgico, pronto para o sacrifício que o celebrizou. Este teor psicológico é acentuado pelas duas dinâmicas figuras em pedra que lutam na base (aparentadas com as de Maximiano Alves para o monumento aos mortos da Grande Guerra, de Lisboa), que podemos identificar como os dois vasos de guerra oponentes ou os dois comandantes (até os dois povos) que no aziago dia se defrontaram. Erigido por subscrição nacional, foi inaugurado em 14 de Outubro de 1931, em Vila Real.

[1] "Sempre Fixe", 15.8.1929, p. 8.

[2] "Diário de Notícias", 26.7.1933, p. 2.

[3] Inicialmente, previa-se que as esculturas seriam da autoria do açoriano Canto da Maia (referida no jornal da nota anterior).

[4] No combate, morreram mais cinco homens.

[5] "Diário de Notícias", 20.4.1928, p. 1.

Foto site "Momentos de História"
Carlos Lopes Alves

Padrão de Santa Maria,
desenho de Carlos Botelho, 
"Sempre Fixe", 15.08.1929

Monumento de Ponta Delgada - Foto Joaquim Saial
 
Monumento de Vila Real - Foto Joaquim Saial

Foto Joaquim Saial

Foto Joaquim Saial

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